Todos nós conhecemos alguma fábula que ouvimos ou lemos na infância. Em geral eram estórias que nos ensinavam lições através de mundos de fantasia e personagens fantásticos, como a lebre e a tartaruga apostando uma corrida, ou o lobo mau enganando a inocente Chapeuzinho Vermelho.
Outras chegaram a nosso conhecimento com finais mais felizes do que os originais, como o conto de Cinderella que cuidadosamente omitiu que suas irmãs malvadas têm seus olhos perfurados por pombos. Ou mesmo a jornada da Pequena Sereia, que tem sua língua cortada e suas pernas novas doem terrivelmente, maldição essa que só seria quebrada se ela assassinasse seu amado príncipe e deixasse seu sangue cair em seus pés (spoiler: ela não tem coragem de matar o cara, mesmo ele escolhendo ficar com a outra, e vira espuma no mar).
Essas estórias originais e menos palatáveis não chegaram a nós por um motivo óbvio: são aterrorizantes! E nós conhecemos a maioria dessas fábulas contadas pela gigante do entretenimento, Disney, que obviamente, não podia terminar seu desenho animado com a Branca de Neve cuspindo um pedaço de maçã que estava entalado em sua garganta e acordando de seu sono (spoiler: nesse aqui a rainha má é punida pelos anões, tendo de dançar até a morte com sapatos de ferro em brasa).
E talvez seja por esse mesmo motivo que Slovenly Peter também não nos alcançou.
A primeira vez que ouvi falar de Slovenly Peter foi em um artigo falando sobre as origens dos quadrinhos. Escrito em 1845 pelo psiquiatra Heinrich Hoffman, o livro era destinado a seus filhos de três anos e contém uma série de imagens em cada pequeno conto. A obra foi um sucesso na Alemanha e quatro anos depois foi publicado em inglês nos Estados Unidos, onde também foi um sucesso. Anos depois, Mark Twain faria uma tradução livre incrível dessa história, que foi o livro que eu fui buscar para ler.
Lendo Slovenly Peter eu cheguei a uma conclusão: As estórias infantis do passado definitivamente não ensinavam pelo amor. Minha infância foi repleta de contos bonitos e divertidos, com finais felizes… que privilégio aprender nos tempos de hoje.
A estória que dá nome ao livro é um pequeno poema sobre Pedro Desleixado (fica aqui a minha tradução livre), um garoto que não se limpa, não corta suas unhas, nem penteia os cabelos. O autor pergunta “Há quem o odeie? Alguns!” e encerra o pequeno verso chamando o garoto de nojento. Em outro conto, um garoto que coloca seu dedo na boca é visitado por um alfaiate, que usa sua grande tesoura para lhe cortar os dedões.
Essa é a toada das fábulas de Hoffman, que foram maravilhosamente traduzidas, com direito a pequenas notas de rodapé de Twain se desculpando por usar de termos errados para preservar rimas, e avisando às crianças que nunca falem daquele jeito. São diversas estórias bem pequenas, uma leitura complicada por conta do inglês antigo, mas que me divertiu e aterrorizou. Eu, no auge de meus 35 anos, ainda não sei se esse terror foi pelos contos, ou por descobrir que alguém já os contou para inocentes crianças de 3 anos.
Para mim só ficou uma dúvida, não consigo saber se a obra de arte é de Hoffman ou de Twain. As ilustrações são divertidas e peculiares e eu pensei até que elas fazem muito sentido ao lado de bonecas macabras e brinquedos quebrados, mas a tradução livre de Mark Twain é incrível e confere um senso cômico ao texto que eu não sei se existe no original. De qualquer forma, o aprendizado pelo terror pode ter saído de moda, mas se seu inglês está afiado e você gosta de um pouco de horror kitsch, O Pedro Desleixado pode ser para você.
Livro: Slovenly Peter – Freely translated into English by Mark Twain – Calla Editions